quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Caixa de lembranças

Autor: Walter Cunha

Sexta-feira, 18h, algumas pessoas saem do trabalho e vão direto ao bar mais próximo. Como de costume, a cervejinha gelada e os petiscos convidam para mais um happy hour. Alcides, o contador-chefe, é um homem sério, reservado, meio franzino e próximo aos 40 anos de idade, Desta vez, após muita resistência, resolveu ir com o pessoal do escritório ao famoso encontro de todas as sextas, no Bar do Matão. Ele não gosta de barulho e nem daquela euforia que toma conta das pessoas, simplesmente porque chegou o final de semana. Para ele, é só uma grande válvula de escape que serve apenas para aliviar a massacrante rotina dos colegas do escritório de contabilidade, onde trabalha há quase 15 anos.

O Bar do Matão, na rua Augusta, é o point semanal após o expediente. Ali os rapazes já armam suas baladas, afinal a própria rua oferece tudo que podem desejar depois de algumas garrafas de cerveja. Sexo, drogas e rock and roll estão no cardápio principal dessa alameda das orgias a céu aberto. Geraldão, o garçom mais simpático do bar e querido por todos, não conhecia o novo integrante do grupo e ao ver os rapazes chegarem, lançou uma das suas famosas tiradas- quem é o pinto novo do galinheiro, rapaziada? E a galera tratou de formalmente apresentá-lo. Com as pompas dos boêmios, um deles falou- é o pinto pagador, o chefe do pessoal do escritório. Alcides, simplesmente acenou com a cabeça, não sabia onde enfiar a cara, pois seu jeito reservado não permitia esse tipo de intimidade, embora convivesse com a maioria deles há muitos anos. No início, o clima, estava tenso, pois a postura de Alcides não deixava os outros à vontade. Mas, o poder de desinibição do álcool não tardou para fazer efeito nas cabeças animadas e em questão de minutos todos estavam rindo e contando as piadas repetidas de toda sexta-feira. Pronto, estava posto o clima festivo a que todos se dispunham. A conversa estava rolando, Alcides já estava relaxado e até se divertindo com as anedotas sem graça dos colegas.

Geraldão trazia as cervejas e petiscos e a cada rodada olhava fixamente para Alcides como se o conhecesse de algum lugar. Aquele jeito sério e a face marcada por vincos de expressão austera não lhe eram estranhos. Só não conseguia se lembrar de onde e nem de quando viu aquele rosto, afinal foram tantas noitadas na vida, tantos rostos. Repetidas vezes, o garçom se aproximou para averiguar se não estava se confundindo, se não era só alguém parecido com outra pessoa que ele conhecia. Lá pelas tantas, naquele momento que a bexiga já não suporta mais tanta pressão de cerveja, Alcides levantou-se para ir ao banheiro e trombou de frente com Geraldão. O encontro no meio do bar foi como um déja vu para Alcides, e naquele momento a sua cabeça girou mais do que o normal, uma tontura tomou conta do seu corpo que quase cai. Alcides, mesmo meio embriagado, reconheceu o garçom simpático. Mas, não podia ser a mesma pessoa, tantos anos se passaram, precisamente 15 anos desde a última vez que se viram. Alcides seguiu em direção ao banheiro e Geraldão levou mais uma rodada de cervejas para a mesa. Quando Alcides retornou, todos perceberam que sua face mudara e havia um incômodo no ar. Mas, todos em respeito, não perguntaram nada a ele. Alcides, apressadamente, sem dar muita explicação, falou que tinha algo urgente para resolver em casa e precisava ir embora naquele momento. Deixou a sua parte do dinheiro para pagar a conta e saiu sem se despedir direito. Em direção ao carro, que estava estacionado na garagem do escritório, ele foi pensando no encontro inesperado que acabara de ter e se o garçom o teria reconhecido como ele o reconheceu.

Geraldão era mais magro e não tinha tatuagens, era comunicativo e tinha um jeito despojado, quando se encontraram pela primeira vez na cidade de Bauru, onde se conheceram. Os anos passaram e ambos se tornaram pessoas diferentes, cada um com suas escolhas. O primeiro encontro foi especial para ambos. Os dois estavam no último ano da faculdade. A cumplicidade, as afinidades e a química entre eles eram perfeitas. Mas, o ano letivo acabou e junto veio a formatura e também a separação. Alcides é de Piracicaba e Geraldão da capital. Alcides tem pais idosos, religiosos e conservadores. Geraldão foi criado também no rigor, serviu o exército e tinha dotes artísticos, tocava violão e gostava de literatura. A separação aconteceu porque ambos desejavam coisas diferentes. Alcides queria continuar os estudos, fazer mestrado e doutorado em economia. Geraldão não queria seguir carreira e fazia faculdade de economia para satisfazer os pais. Ele na verdade, queria montar um bar, uma pousada ou um restaurante, era mais dado ao contato social. Cada um seguiu seu caminho, mas o que houve entre os dois não havia morrido, era fato. Concordaram então, em manter contato e assim que cada um encontrasse o prumo na vida, se reencontrariam para continuar aquela relação que parecia ser para sempre. Tudo era sigiloso porque na época, as pessoas ainda eram intolerantes com esse “tipo de amor”, entre rapazes.

O filme da história dos dois passava pela cabeça de Alcides. Sem saber o que fazer, entrou no carro e dirigiu-se para casa. Ao chegar foi direto buscar no guarda-roupa, uma caixa de lembranças onde havia fotos e cartas dessa época que ele acabara de lembrar. As fotos o remeteram mais uma vez àquelas sensações de quando era jovem e a vida era um grande playground. Sorriu e até gargalhou sozinho, lembrando das farras que eles aprontavam, sem que ninguém na faculdade soubesse o que se passava entre os dois. Pareciam só bons amigos e parceiros como é comum entre homens, nessa fase da vida.

E agora o que fazer? Estava confuso, surpreso e feliz ao mesmo tempo. Depois que se separaram a vida encarregou-se de distanciá-los. As correspondências diminuíram com o tempo e os telefonemas minguaram pouco a pouco. Em menos de um ano, depois da formatura, já não se falavam mais e perderam o contato definitivamente. Após tanto tempo, como poderia abordá-lo? E se ele tivesse esquecido tudo e tomado outra direção? O garçom que ele viu não se parecia em nada com aquele sujeito de 15 anos atrás, ele só o tinha reconhecido pelos traços fisionômicos inconfundíveis, e uma cicatriz pequena no rosto, adquirida na faculdade, numa festa particular dos dois, após escorregar e bater o queixo no batente da porta do quarto, da república onde moravam. Agora, Geraldão parecia ter adquirido a malícia e a malandragem dos boêmios do centro da cidade.

Decidido a reencontrar o garçom, Alcides juntou todas as fotos e cartas, recolocou-as na caixa de lembranças e começou a pensar numa maneira de falar com ele, sem que as pessoas do escritório tomassem conhecimento do fato dos dois se conhecer, há muito tempo. No outro dia, era sábado e não havia perigo do pessoal da firma aparecer no bar. Achou que seria prudente ir lá, falar com ele e se identificar. Mas o que dizer? Porque dizer alguma coisa? Se ele não havia sequer lembrado ou o reconhecido? E se ele estivesse casado? Com outro ou com outra. Na época da faculdade, Geraldão saía com meninas também. Mais para disfarçar sua real preferência do que por gostar mesmo da companhia feminina. Todas essas perguntas e dúvidas passavam pela cabeça de Alcides, deixando-o mais receoso e ansioso. Já eram quase três horas da madrugada e ele ainda ali, sobre a caixa, perdido em suas lembranças!

No dia seguinte, levantou cedo, tomou café pacientemente enquanto planejava com detalhes sua abordagem. Cada gesto, cada palavra pensada, tudo que dirá, deverá ser exato para não deixar dúvidas que ele, apesar do hiato de anos, entre os dois, ainda estava disposto a dar continuidade àquela relação interrompida no passado. Após o café, saiu de casa e foi até o shopping comprar um presente. Não queria aparecer de mãos vazias e resolveu comprar uma caixa de discos de rock com bandas que o Geraldão gostava. Ele ainda se lembrava de algumas preferências do ex-parceiro. Ao sair do shopping passou na papelaria e escolheu um cartão simples e escreveu algumas frases retóricas e rápidas do tipo: não sei se acertei, espero que goste..é de coração! Em seguida almoçou e durante o almoço, olhava insistentemente o relógio como se isso acelerasse o tempo, que à sua impressão, não passava.

Enfim, a hora aguardada estava próxima, já eram quase 17h, quando o Bar do Matão abre para os clientes começarem a bebedeira de todo dia. Alcides chegou pontualmente e esperou a chegada dos funcionários. Como de costume, Geraldão estava lá para abrir o Bar, pois era ele o responsável por isso. Coração na boca, pernas bambas e rosto pálido, Alcides atravessou a rua e foi ao encontro de Geraldão que se surpreendeu ao ver o pinto-pagador alí e já soltou uma das suas- virou pinto-pinguça, tão cedo no Bar? Alcides, quase afônico, respondeu chamando-o pelo nome, olá Geraldão, não me reconheceu?! o garçom não conteve a surpresa e gaguejou o nome do parceiro que surgia na sua frente, Al-ci-des!!? Suas dúvidas acabaram, era ele mesmo, o cara da noite anterior que chegou com a turma do escritório de contabilidade, ele realmente o conhecia, não era só uma impressão! Os dois se abraçaram sem falar nada e entraram silenciosos no Bar. Alcides entregou o presente, Geraldão agradeceu, puxou uma cadeira, abriu uma cerveja, pegou dois copos e sem falar nada, serviu os dois, sentou-se, olhou por alguns segundos dentro dos olhos de Alcides e com um tom de voz suave, perguntou: Por onde você andou esse tempo todo?

Mesmo depois de tanto tempo, alguns segundos em silêncio foram suficientes para os olhares se reconhecerem e a intimidade vir à tona. No momento seguinte, perguntas e respostas aflitas se pronunciavam atropelando umas às outras. Beijos e abraços ardentes tomaram conta dos corpos que se entrelaçaram como nó cego. Após o contato físico e com os ânimos mais calmos, concordaram que teriam outro encontro para conversarem calmamente, em outro lugar, onde poderiam ficar à vontade. Era sábado e os outros garçons e clientes estavam chegando. A noite começa cedo aos fins de semana, na rua.

Combinaram, então, que se encontrariam no dia seguinte. Alcides deixou o número do seu celular e foi embora com a certeza do próximo encontro, sentindo-se feliz e mais vivo do que nunca. Algo que não sentia desde o tempo da faculdade.

Durante o domingo inteiro ele aguardou o telefonema de Geraldão para marcar o lugar do encontro, as horas o consumiram, o dia passou e o garçom não ligou. Uma mistura de frustração e curiosidade, de medo e de raiva, de tristeza e dúvida o invadiram na manhã de segunda-feira. Tinha uma rotina maçante a seguir e não sabia o que pensar. Porque o outro não ligou? Será que se arrependeu e desistiu de revê-lo? Bom, aguardaria mais um pouco e se não obtivesse contato, iria ao Bar falar com Geraldão. Agora pouco importava o que os outros pensariam dele, se soubessem o que se passava entre os dois. O que ele mais queria era resgatar aquela relação. E estava disposto a se expor por isso.

Quando chegou ao escritório, entrou como de costume, desejou bom dia a todos e percebeu um ar sério e de tristeza no rosto dos companheiros de trabalho. Deixou suas coisas na mesa e ao retornar para tomar um cafezinho, perguntou a um deles o que tinha acontecido, se o timão havia perdido mais uma partida ou algo assim. Não, não é o futebol a causa da tristeza de todos, Renato, o arquivista, acaba de nos contar que o Geraldão, lembra? O garçom gente boa do Bar do Matão que te apresentamos na sexta-feira foi encontrado morto, no hotelzinho onde mora, ali na Santa Cecília. Mais uma vítima dessa violência cruel e corriqueira a qual nos acostumamos, respondeu o colega.

Alcides sentiu sua alma esvair-se do corpo, uma onda gelada tomou conta dos seus órgãos internos e sentiu o coração contrair-se, achou que morreria naquele momento. Mas conseguiu recompor-se e sem mencionar nenhuma palavra sobre a notícia, entrou na sua sala, disse a secretária que não queria ser incomodado, trancou-se e retirou da gaveta uma pistola 38 que havia adquirido há muito anos, após uma tentativa de seqüestro relâmpago que sofreu. Sentou-se na cadeira, retirou do bolso uma foto dos dois juntos, tirada na época da felicidade. Olhou-a atentamente como se quisesse registrar bem aquela imagem e sem pensar, num movimento automático, disparou contra a cabeça.

O escritório inteiro correu em direção à porta, ao ouvir o disparo, e sem muito esforço, os rapazes conseguiram arrombá-la. Na sala de Alcides, corpo estendido, foto na mão e caixa de lembranças em pedaços espalhados, por todos os lados.




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