quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O dono da bola de meia

Autor: Walter Sá


A tarde está quente e a chuva cai no horário certo, lá pelas três da tarde, como de costume. Os meninos da rua estão todos animados para começar a partida de bola de meia, iniciando o fim de semana da molecada. Eu não gosto tanto assim de futebol, apesar de jogar sempre com os moleques. É legal, somos amigos. Principalmente depois que o Marcel mudou para o bairro e o conheci. Ele e o Duzão, que conheço desde pequeno, também são amigos. Gosto mais de chuva, a sensação da água caindo continuamente no rosto e encharcando aos poucos o corpo, gosto também das bicas de canto de telhado e calhas, que formam quedas d’água fortes e me lembram cachoeiras, o vento que muda de direção, os pingos d’água, o cheiro da terra molhada. Tudo isso sim, eu adoro. Olhava pela janela da sala, lá no fim da rua, para ver se os meninos já estavam chegando. A chuva não tinha parado ainda, mas assim é melhor, pois a bola de meia fica pesada, encharcada com a água da chuva.

De repente, um grito da cozinha: “Ulisses, menino, venha já, que a merenda tá na mesa”, gritou Naná. A cozinheira da família desde meus oito meses. Nana é mais que da família, é praticamente minha segunda mãe e me conhece como ninguém. Sabe que adoro beiju doce, suco de siriguela, bolo de macaxeira e faz, toda tarde, tão pontual quanto a chuva, essas delícias para eu comer, às vezes ela diz para eu chamar os outros moleques para comer comigo e depois nos manda ir para rua brincar, para deixá-la fazer o serviço de casa, sossegada.

Foi isso que aconteceu, os moleques me chamaram lá na porta da rua, assim que cheguei na cozinha e sentei à mesa para me deliciar com as guloseimas preparadas para o lanche. Não tive opção senão convidar a turma para vir fazer o lanche comigo. Depois fomos para a rua, a pelada ia começar, dividimos os times e tiramos na sorte quem ficaria sem camisa, pois assim, fica mais fácil diferenciar os jogadores de cada time. As traves, feitas de latas com cimento dentro, já estavam na rua. A distância entre elas para demarcar o gol era de quatro passos, pois não havia goleiro. Foi quando Marcel me chamou de canto e falou que tinha algo para me perguntar. Fiquei curioso. A partida começou, era 10 ou 2 como a gente diz, ou seja, em 10 minutos quem fizer dois gols ganha, se não houver gols marcados, nesse período, a gente prorroga a partida por mais 5 minutos e quem fizer o primeiro gol ganha o jogo.

Nosso time, formado por Mario, Carlinhos, Júnior e eu, era evidentemente mais fraco que o time de Marcel, composto por ele, o Alê, Tiaguinho e o Duzão. A gente estuda na mesma escola e temos quase a mesma idade. Os mais velhos são Marcel e Duzão, que estão no 1º colegial e têm 17 anos, os dois. Eu acabei de fazer 15. Apesar de serem os bons de bola, a partida não estava fácil para eles. O primeiro gol foi marcado por eles, mas nós conseguimos empatar e fomos à prorrogação. Marcel e Duzão no mesmo time eram imbatíveis, os dois realmente têm habilidades a mais, no futebol do que o resto da turma. A prorrogação estava quase terminando e sem nenhum dos dois times ter marcado nenhum gol, quando o Duzão me deu um encosto ou empurrão numa disputa de bola, que me derrubou e caí por cima do braço, quebrando o cotovelo. Nesse momento, todos assustados, gritaram por ajuda. Chegou Naná, que me ajudou a levantar, chamou a ambulância e, em seguida, vieram me buscar para imobilizar o braço. As duas pessoas que foram comigo foram Naná e Duzão, que estava triste e se sentia culpado pelo acidente e a toda hora pedia desculpas por ter me empurrado com força. O braço doía muito e eu mal prestava atenção às suas desculpas, queria que a dor passasse logo. Naná estava nervosa porque não conseguia falar com minha mãe ao celular. Eu tenho um bom plano de saúde e quando nós chegamos ao hospital, eu fui rapidamente atendido. Enquanto Naná preenchia todas as fichas e formulários necessários, os médicos me levaram para fazer a radiografia e ver o quanto eu tinha me machucado. Duzão me acompanhou e fez um monte de perguntas ao médico. Fiquei impressionado com a curiosidade de Duzão e não sabia que ele se interessava tanto por medicina. Fiquei mais impressionado ainda com a preocupação de Duzão comigo. Cuidado com ele, dizia Duzão ao médico, que se irritou um pouco e falou para ele aguardar na sala de espera. Mais ou menos trinta minutos se passaram até que eu saísse da sala com o braço já engessado.

Em seguida, Naná chegou com tudo já preenchido, entregou as fichas ao médico, que lhe entregou minha radiografia do braço. Duzão permanecia ali, mas dessa vez, quieto, sem dar uma palavra, nem com o médico, nem com Naná e nem comigo, até chegarmos à rua onde morávamos. Antes de descer do táxi, a única coisa que repetiu foi, desculpe-me mais uma vez. Não tive a intenção de te machucar, respondi, que tudo bem. Já era noite, mamãe havia retornado do trabalho e me recebeu um pouco assustada, até que Naná falou que estava tudo bem e não tinha sido nada grave, só teria que passar 45 dias com o braço imobilizado, talvez assim, ele sossegue D. Helena. Contei a ela, que o Duzão não fez por mal e que tinha sido durante uma disputa de bola na nossa pelada de futebol, isso acontece. Nunca tinha quebrado nada, nunca tinha usado um gesso e aquilo tudo era novidade, desde as sensações até ficar respondendo à curiosidade de todo mundo para saber como tinha acontecido. A gente mora no bairro São Brás, aqui todos se conhecem, ou pelo menos se cumprimentam quando se encontram, na missa de domingo à tarde. Mamãe não vai todo domingo à igreja, o lugar que se perde perdão, mas também se julga todo mundo, mamãe fala que na missa há mais fofoca do que no salão de D. Inês.

O fim de semana foi longo e toda vez que eu colocava os pés fora de casa, mais um curioso vinha com a pergunta, quebrou o braço? Sim, jogando bola ontem à tarde, repeti incontáveis vezes, satisfazendo à curiosidade de todos. Menos Duzão, esse eu não vi nem sábado, nem domingo, pela rua. Telefonei várias vezes para casa dele, mas D. Inês me dizia que ele estava no quarto dormindo, que daria o recado, mas nada Duzão não apareceu. Só segunda de manhã, ao chegar à escola, que pude vê-lo, estava abatido e com a mesma cara de sexta-feira, quando voltamos do hospital. Não pude falar com ele direito na chegada, pois a sirene de entrada já havia tocado, corremos cada qual para o seu prédio em direção às salas. Na hora do recreio, todos estavam me aguardando para comentar o jogo de sexta, que acabou no meu acidente e não teve vitória de ninguém. Nenhum dos meninos ficou preocupado, nem estava triste na segunda. A galera ficou o tempo inteiro me zoando porque eu não poderia jogar bola e nem tomar banho de chuva, durante o período que estivesse com o gesso no braço. Perguntei ao Marcel pelo Duzão, eles estudam na mesma sala e não se desgrudam, Marcel me disse que Duzão se sentiu mal no início da aula e pediu para a professora liberá-lo para voltar para casa. Perguntei se ele sabia o que Duzão tinha, mas ele não sabia. Após a aula, retornamos para casa e fiquei preocupado com Duzão. Apesar de ele agora ser mais amigo de Marcel, nós também somos muito unidos. A gente se conhece desde pequeno, antes mesmo de Marcel se mudar para o nosso bairro. Duzão era ruivo e quando a gente era menor eu dizia que ele pintava o cabelo, Duzão é filho de Inês, a dona do salão de beleza.

Acabei de almoçar, fui para o quarto e liguei para o Duzão para saber o que ele tinha e se estava melhor. Quem atendeu foi D.Inês, mais uma vez. “Oi, Ulisses, tudo bem? Como está seu braço? Sua mãe me contou que você se machucou jogando bola, com os meninos, né? E que foi o Duzão, o responsável. “Ele estava de castigo o fim de semana inteiro”. Pois é D.Inês, foi sim, mas está tudo bem. E o Duzão está por aí? Soube que ele passou mal hoje na escola e voltou para casa. “Sim, Ulisses, ele está meio estranho desde sexta-feira, ele está com febre, já dei remédios a ele e estou aguardando a febre diminuir para levá-lo ao médico. Quando ele acordar, aviso que você ligou, ok?” Obrigado, D. Inês, até logo! “De nada Ulisses, cuidado com esse braço, menino, tchau.”

Quando desliguei, fui fazer os deveres da escola e passei a tarde estudando. A semana de provas começa segunda-feira que vem e não tirei boas notas mês passado. Eram quase fim de tarde, quando o telefone tocou e Naná me chamou. “Ulisses telefone para você, é o Duzão”. Larguei os livros em cima da cama e corri para atender ao telefone. “Olá, Duzão, tudo bem? O que aconteceu, você tá doente?” “Não sei, acho que não, fui ao médico, mas ele disse que não tenho nada, pediu alguns exames para eu fazer e depois ir lá novamente para entregar os resultados”. “E você como passou o fim de semana de braço quebrado? Por minha culpa, né?” “Ô Duzão, pára com isso, a gente é amigo e sei que você não me empurrou com maldade, foi uma disputa de bola, o jogo estava bom e foi um acidente. Além do que sou menor que você e mais magro também”. “É verdade, você é magrelo mesmo!” “Mas vou ficar forte como você e não vou mais cair de bobeira. Rapá, vamos fazer o que, às sexta-feiras, à tarde , afinal você é o dono da bola de meia e o médico disse que você não pode jogar bola, nem tomar banho de chuva. A galera vai sentir sua falta e principalmente da partida com a bola de meia, né?”

Ulissessss! O grito vinha da cozinha, era Naná. Vem comer menino, preparei seu jantar, vem logo antes que esfrie. Já havia se passado quase 1 hora ao telefone com Duzão e eu nem percebi, a conversa tava boa, mas Naná quando chama. Rapidamente nos despedimos, “Duzão, a Naná está me gritando lá na cozinha, para eu ir jantar, você sabe com é, agora é toda hora comida, em vez de forte com você, acho que vou ficar gordo”. “Ok, Ulissses, depois eu ligo para saber o que eu vamos fazer sexta-feira na hora do futebol. Falou, tchau, tchau” respondeu Duzão.

Desliguei o telefone e fui jantar, como sempre, Naná fez uma comida deliciosa, bife bem acebolado, salada, arroz com feijão e batata frita, suco de pitanga e, de sobremesa, pudim de leite. Ahhhhh, que delícia, quando mamãe chegou na cozinha, eu já tinha terminado e Naná só elogios, comeu tudo D. Ana, principalmente o pudim de leite, quase metade, mas ele mereceu, comeu tudo sem reclamar. “Que bom, Naná! afinal o moço está virando um rapaz, né? No fim do mês que vem são 15 anos, como passa rápido, parece ontem. Você lembra?” “Claro, D. Helena, ele era um bebezinho e nem andava ainda, quando eu vim morar com vocês. Agora tá aí, um rapagão, daqui a pouco ele está dando trabalho para a senhora com as meninas”. Ô, ô vamos parar com a conversa, estou indo para o quarto, não sou mais um bebezinho não e não tem menina nenhuma também, Naná. Tchau... vou ver TV no quarto, que ganho mais.

Fora o incômodo do gesso e o ralado na perna, ficar em casa sem fazer nada era muito bom. Só na hora de escrever, que eu não conseguia, então para fazer os deveres da escola eu precisava pedir para Naná me ajudar, pois meus pais trabalham fora e, por enquanto, sou filho único, não tenho irmãos para essas utilidades. Só que Naná teve pouca escolaridade e a letra da Naná é tão difícil de entender quanto bula de remédio em chinês. A semana toda fiquei fazendo os deveres na escola depois das aulas, mas a professora não podia ficar comigo durante o período, que eu ainda ficaria com o braço imobilizado. Aproveitei também a hora do recreio para colocar as tarefas em dia. Estava próximo do fim do semestre, era o último bimestre e estava difícil com o acúmulo de matérias. Durante esses dias, o único amigo que vinha me ver na hora do recreio era Duzão. Ficava um pouco e depois voltava para o pátio jogar um pouco de xadrez com o Marcel. Os meninos todos ficaram um pouco desanimados para jogar futebol hoje à tarde, o Duzão me contou, na hora que veio falar comigo.

Nosso jogo de bola de meia acontece já faz quase um ano. Marcel se mudou para o bairro nessa época, a gente não jogava com bola normal porque pula muito e toda hora caía nos quintais da vizinhança, quebrando alguns vasos de plantas e janelas de vidro também. As vizinhas ficavam gritando e brigando com a gente, o tempo todo e o jogo sempre acabava porque algumas resolviam confiscar a bola e entregar somente na segunda-feira. Para acabar o confisco, eu fiz uma bola utilizando meias velhas. A bola fica encharcada com água e não quica no chão, eliminando o risco de qualquer acidente com os vasos e janelas das vizinhas. Nessa época não éramos tão unidos e quase não saía de casa para brincar na rua com os outros meninos.

Chegou sexta-feira, eu de braço quebrado, me sentia meio triste por não poder brincar com a galera. Ofereci a bola para o pessoal na escola, mas ninguém queria jogar sem a minha presença no jogo, até porque, na hora da divisão dos times, não daria certo, justificou Marcel. Já quase na hora de começar a partida, a chuva já caía como de costume e o lanche já estava posto na mesa por Naná, quando a campainha tocou. Fui ver quem era, pois não esperava ninguém em casa. Quando abri a porta, para a minha surpresa, era o Duzão.

“Oi, Duzão, que foi? Que aconteceu? Nada não, só vim ver se você quer jogar xadrez, hoje não vai ter futebol, então pensei, será que você não estaria com vontade de brincar de outra coisa. Entra aí, claro, tá um tédio, não poder sair para brincar de bola. Ô Duzão, quem disse que eu sei jogar xadrez? Cara, não sei não. Sou uma negação em jogo assim, com damas é a mesma coisa, não sei nada. Ah, então eu te ensino, replicou Duzão, tá afim de aprender, perguntou. Eu disse que sim, eu tava afim mesmo de aprender a jogar com aquelas pedras que tinham nomes, na verdade eu morria de curiosidade para saber a função de cada uma. Foi dessa forma que nossa amizade se fortaleceu mais e nos tornamos mais unidos que antes. Durante um mês e meio, Duzão ia quase todos os fins de tarde, até nos fins de semana, a gente ficava jogando. Pedi a ele que me ajudasse com os deveres da escola, expliquei que os garranchos da Naná eram difíceis de compreender. Ele aceitou. Então eram os deveres e depois o xadrez.

Interessante como, às vezes, os menores acontecimentos trazem profundas mudanças às almas do seres humanos.

Durante os dias seguintes a rotina se transformou e a presença de Duzão em casa, quase a tarde toda, até a noitinha, trazia uma alegria diferente. Apesar de já conhecê-lo há alguns anos, eu não sabia que ele era irremediavelmente gozador e que tirava sarro de tudo.

Aguardar a hora de fazer os deveres com a ajuda de Duzão era excitante, me sentia muito ansioso. Isso começou a me perturbar um pouco, não entendia muito bem porque sentia tanta falta da companhia de Duzão. Ele era como o irmão mais velho e conversávamos sobre quase tudo. Fazia um monte de perguntas e Duzão respondia como se soubesse tudo da vida, como assim? Ele é apenas dois anos mais velho que eu! Mas eu achava Duzão um cara muito esperto e descolado. O mês passou e durante esse período fortalecemos a nossa amizade, Duzão já era praticamente de casa. Mamãe sempre perguntava por ele e nossas atividades juntos aumentaram. Logo após retirar o gesso, ainda sentindo o braço frágil, Duzão me convidou para ir à piscina do Clube e falei que também não sabia nadar. Comecei a treinar natação para ficar mais resistente e forte. Mamãe dizia que esse era um esporte completo e que seria ideal para mim. O Duzão já nadava bem e ia ao clube para gente ficar treinando depois da aula para que eu aprendesse mais rápido. Foi o que aconteceu em menos de um mês de aula, eu já conseguia atravessar toda a piscina semi- olímpica do clube. Além de jogar xadrez, agora eu também sabia nadar, graças a Duzão.

Dois anos depois do braço quebrado, nossa amizade é ainda maior. Chegam as férias e viajamos juntos, as namoradas são amigas também e quase sempre, aos fins de semana, saímos para nos divertir. Duzão já tem dezenove anos e já estou perto dos dezessete, então eu ainda não entro em determinadas baladas e nem chego em casa, tão tarde quanto Duzão. O fim de ano está chegando e em Dezembro vamos viajar juntos para uma excursão no Peru, nossa primeira viagem internacional.

O fim de ano chegou, o ano foi intenso e difícil. A formatura, como sempre, aquela festa em que todos ficam bêbados até cair. E foi aí, que tudo aconteceu. Durante a festa, Duzão bebeu muito e eu também, todos vomitaram e passaram mal de tanta birita. Lá pelas tantas, quando todos já haviam ido embora e só estávamos praticamente nós dois no Clube, Duzão me chamou para ir tomar a saideira no Bar da Praça, aceitei o convite e fomos a pé, de madrugada pelas ruas de São Braz, apoiados um no ombro do outro. Eu, como era mais novo e mais fraco que Duzão, quase não conseguia andar sustentando seu peso bêbado. Ao virar uma esquina, tropecei no meio fio solto das calçadas e caímos, Duzão em cima de mim quase me quebra inteiro, mas ao perceber que tudo estava bem, começamos a rir descontroladamente porque Duzão lembrou na hora, do acidente com meu braço e disse assim: “não quero te ver machucado de novo, sofri quando te empurrei aquela vez no futebol e você quebrou o braço, foi ali Ulisses, que comecei a gostar de você”. Não entendi muito bem o gostar que Duzão falou e no meio disso tudo ainda no chão, sem forças para levantar Duzão me abraçou e me beijou repentinamente. Eu não resisti àquele beijo. Quando terminou, mudos e sem dar uma palavra levantamos e como se o beijo fosse curativo, a bebedeira havia diminuído e conseguimos retornar para casa. No dia seguinte, já estávamos de férias e a viagem para o Peru, confirmada.

O nosso vôo sai às dezenove horas e até às quatorze, o Duzão não havia ligado, fiquei preocupado e liguei para a casa dele. Alô, atendeu D. Inês chorando, “oi Ulisses, o Duzão está com você?” “Não D. Inês, liguei porque estou preocupado, nós temos que estar no aeroporto às dezoito horas, no máximo, onde está o Duzão?”. “Não sei meu filho, ele não está em casa e as coisas dele também não. Fui até o quarto dele e só vi umas roupas jogadas no chão, não o encontrei na vizinhança e vi que a mala de viagem dele não está aqui. Não sei para onde ele foi”. Fiquei gelado por dentro, o que será que se passa na cabeça desse maluco, eu pensei! Eu ainda estava meio atônito com o ocorrido entre nós, na madrugada e era justamente essa minha ansiedade, eu queria encontrar com Duzão para esclarecer as coisas e dizer que eu também gostava dele de um modo diferente, que eu não entendia isso, mas seria um segredo nosso, que desde o episódio do braço e todos aqueles dias juntos me fizeram percebê-lo melhor, como amigo, parceiro. Ao mesmo tempo, que eu estava ainda confuso, estava feliz e excitado com a possibilidade de dividir com ele o que sentia, sem medo.

Continuamos procurando e ligando para todos os conhecidos do bairro, o dia terminou com a busca frustrada. Não encontramos o Duzão. Nem nesse dia, nem nos dias posteriores. A viagem abortada, meu amigo e recém-descoberto amor, desaparecido. Uma tristeza profunda me abateu e comecei a definhar nas semanas seguintes até minha mãe resolver me levar ao médico. Foi lá, conversando com o Dr. Aurélio, meu médico desde criança, que confessei estar deprimido pelo desaparecimento de Duzão, que eu gostava dele, que nós havíamos nos beijado e que eu não conseguia mais ficar sem a presença dele. Minha mãe chocada, surpresa e horrorizada com minhas declarações, ao sair do médico, falou que me internaria numa clínica e que eu estava realmente muito doente. Passei um mês numa clínica para tentar me recuperar da “doença” que minha acreditava que eu tinha. E tinha mesmo, no mês seguinte, internei novamente, e permaneci por mais de um ano entrando e saindo de clínicas psiquiátricas, sofrendo de loucura de amor. Sem saber do paradeiro de Duzão, D. Inês também passou um ano chorando a ausência dele.

No dia do meu aniversário de dezoito anos, eu estava saindo de uma das internações, estava no quarto me preparando para aguardar minha mãe na recepção da clínica, que estava vindo me buscar, quando entra a enfermeira inesperadamente no quarto com um presente nas mãos e com um bilhete, disse-me que um moço moreno de barba havia deixado na portaria e que era para entregar ao Ulisses, que era um presente de um amigo. Peguei o presente das mãos, sentei-me na cama, ela saiu do quarto e então resolvi ler o bilhete antes de abrir a caixa. Dizia o seguinte, “Ulissses, desculpa a minha covardia, a fuga e a falta de notícias, mas foi o único jeito que encontrei de não sofrer e de não te fazer sofrer, não entendia o que sentia e nem podia imaginar como você me trataria depois daquele beijo. A falta de coragem me fez desaparecer até que entendesse o meu desejo, a minha opção, e principalmente quando eu poderia retornar e te rever sem receios. Estou aqui e ninguém da minha família sabe, falei apenas com o Marcel, que me contou sobre você e onde você estava. Vim disposto a enfrentar todos para estar com você, claro se você quiser, na minha precipitação, fui egoísta e não pensei que você pudesse ficar doente por minha causa. Estarei amanhã na porta do nosso antigo colégio primário, lá no Bairro Santa Cruz, ao meio-dia, não conte a ninguém sobre mim, já avisei o Marcel, mas não confio nele e sei que amanhã, todos estarão me procurando. Não retornarei para casa dos meus pais e não ficarei aqui sem você perto de mim. Quero ser feliz com você, mas bem longe daqui”. Fui ficando nervoso e angustiado, saí pela porta do quarto correndo em direção à rua e não havia mais ninguém por perto. Retornei ao hospital e abri a caixa. Dentro havia uma bola, meias velhas, que as reconheci, eram minhas e do Duzão.

Minha mãe chegou e eu já havia guardado tudo. Estava estarrecido e pela minha cara dava para perceber o meu grau de felicidade, repentina. Ela logo perguntou: está se sentindo melhor, filho? Claro, mais do que nunca! Durante o retorno para casa, perguntei a mamãe se ela acreditava no que eu sentia pelo Duzão. E mais uma vez, com a mesma certeza de um ano atrás, ela repetiu, que isso era passageiro e que eu não era gay e que o Duzão era um pervertido e que o melhor que ele podia ter feito era ter sumido mesmo. Silenciei e concordei afirmativamente com a cabeça para que a conversa não se estendesse. Paramos tomamos um sorvete e ao chegar, fui direto para o quarto, liguei o som e coloquei para tocar um disco de Eliseth Cardoso da minha mãe, que ela ouvia sempre e eu com ela desde pequeninho. Escolhi a música Pressentimento e comecei a arrumar uma pequena mochila com minhas coisas indispensáveis, pouca roupa e alguns maços de cigarros. Já era quase noite quando fui até a cozinha falar com Naná e saber o que tinha para comer. Naná tinha feito um café à tarde delicioso, ela era a única para quem eu não conseguia dissimular nada e nem tentar enganá-la, parecia bruxa, vidente ou coisa assim e sempre que eu estava para aprontar alguma ela era a primeira a pressentir. E foi logo soltando, que cara é essa Ulissinho, o que você está aprontando, essa cara, conheço bem. A minha felicidade era tanta que para Nana não consegui esconder e mostrei a carta de Duzão, que eu trazia comigo no bolso. Naná apesar do pouco grau de instrução leu e compreendeu o que Duzão havia dito. Naná é como uma segunda mãe e me conhecia muito bem, não podia mentir, sabia que eu ia me encontrar com ele no horário marcado e sabe lá Deus o que iríamos fazer. Encheu-me de conselhos e apontou o perigo que seria encontrar com alguém que eu nem sabia como estava agora, depois de um ano sumido. Expliquei a Naná que não tinha medo algum e que meu coração dizia para eu seguí-lo onde quer que ele fosse e ficou assim, decidido. Naná prometeu silêncio até eu partir.

A noite se passou longa, a ansiedade não me deixou dormir direito e assim que amanheceu, levantei, tomei café da manhã com minha mãe. Ela saiu para o trabalho normalmente e ficamos só eu e Naná em casa. Deu tempo para me despedir e deixá-la menos preocupada, disse-lhe que se nada desse certo, eu retornaria para casa.

Onze horas, saí com minha mochila na mão e um monte de guloseimas que Naná me entregou para que eu não ficasse com fome. Sabe lá quando eu ia comer novamente e todos os remédios que eu vinha tomando durante o ano. Esses, joguei-os fora, na primeira lata de lixo que encontrei.

Cheguei ao lugar marcado pontualmente e assim que desci do ônibus avistei o Duzão. Havia mudado pouco, o cabelo e a barba estavam grandes. Mas seu jeito, seu sorriso, continuavam iguais. Fui ao encontro dele e nos abraçamos durante alguns minutos. Em seguida nos beijamos e ele disse que já tinha tudo armado para a nossa partida.

Conversamos enquanto íamos apressadamente em direção à rodoviária. Ele me contou que havia ido para Teresina, no Piauí, que durante o último ano de colégio tinha economizado a mesada de todos os meses e somado ao dinheiro que tinha para a viagem ao Peru, deu para ele chegar lá se instalar. Contou que começou a trabalhar como office boy num banco, mas agora estava em outro emprego melhor e já saiu da pensão onde estava morando esse último ano. Fez alguns amigos, mas ainda não confia em ninguém por lá. Falou sem parar e pouco perguntei. Chegamos à rodoviária, compramos os bilhetes e na hora que nos dirigíamos à plataforma do ônibus, ouvimos um grito: Ulisses, Duzão!! Olhamos para trás, eram nossas mães. Não entendemos nada, Duzão me olhou e com um olhar de decepção e falou: “Você nos delatou”! Não!! Respondi mas não tive tempo de explicar. Elas chegaram antes disso. Abraçaram a gente e ficamos parados ali, os quatro. Até que D. Inês, aos prantos, disse a Duzão, “por favor, meu filho, fique aqui com a gente. Sei o que se passa entre vocês e aceito você do jeito que você é”. Minha mãe aflita e ao mesmo tempo chorando, dizia o mesmo, praticamente em coro com D. Inês.

A cena de um modo piegas parecia não ter fim, começamos a chorar e olhando fixamente nos olhos um do outro, sem dizer, nada acompanhamos as duas em direção ao carro. Pacificamente aceitamos aquela situação. No caminho de volta para o bairro, foram elas que não paravam de falar e ansiosas para nos dizer que o que mais importava a elas era a nossa felicidade, não deixavam de transparecer a angústia, daquilo que seria, do que estava por vir.

Pensando em nunca mais falar com Naná, pois tenho certeza, foi quem me traiu e contou à minha mãe, que imediatamente comentou com D. Inês, pensei melhor e comecei a achar que assim teríamos mais tempo para planejar melhor a nossa união. Duzão calado estava, mudo permaneceu. Ao chegar em casa, descemos do carro, Duzão apenas disse, num tom de voz seguro e seco, “adeus Ulisses!” Não respondi, porque no seu olhar já não vi mais o brilho de horas atrás, entendi que naquela hora começava o início do nosso fim.

Muitas perguntas, D. Inês tinha para fazer a Duzão, que estava sumido aquele tempo todo. O amor materno é capaz de superar qualquer dor e falha dos filhos, ainda mais como nós, órfãos de pai. Tanto D. Inês, quanto a minha mãe eram mulheres sozinhas e muito batalhadoras, que criaram os filhos sozinhas, isso era um trágico fato comum, entre nós. A minha estava ali, na minha frente, me olhando como um ser estranho, que ela parecia não conhecer, mas estava disposta a entender.

Disse em tom calmo, seguro e determinado. “Não voltarei à nenhuma clínica psiquiátrica e tão pouco deixarei de ver o Duzão. Você já sabe o que se passa entre nós e não suportarei ficar separado dele”. D. Helena me surpreendeu e disse que não, não me encaminharia mais à nenhuma clínica e que quando se viu na iminência de ficar sem mim e sem o meu pai, que morrera há muito tempo, quando eu ainda era um bêbe, ficou desesperada e entendeu que a as expectativas dela em relação à mim, não eram mais importantes do que as minhas expectativas em relação à vida, que eu ainda tinha pela frente. Aquilo, que antes era uma patologia, se tornou esclarecidamente para ela, que não, não era uma doença, apenas minha opção de orientação sexual.

Para D.Inês talvez tenha sido mais difícil entender a opção de Duzão, até pelo próprio estilo dele. Duzão é um cara forte, viril e com fama de namorador na escola. Não era frágil e delicado como se imagina um gay, na fantasia das pessoas.

No dia seguinte, fui até à casa de Duzão falar com ele e D. Inês me recebeu novamente com um bilhete nas mãos, “ele pediu para te entregar, meu filho”! Peguei o bilhete das mãos de D. Inês com o calafrio no coração, trêmulo por já imaginar o conteúdo.

“Ulisses, o amor que sinto por você é grande maior do que posso te explicar com palavras. Arrependi-me por tudo que te causei quando parti, sem me despedir, por isso voltei, mas a sensação de liberdade que provei ao buscar meu caminho, quando fui embora, por covardia de estar aqui e assumir o que sentia por você, é maior. Não quero permanecer aqui, os planos com você eram maiores. Sei que nossa fuga, merecia explicação, por isso não te culpo por ter contado à Naná. A vida que venho construindo em Teresina me faz perceber que o meu caminho não é mais aqui, nesse bairro, com essas pessoas. Agora trabalho, tenho meu sustento e não tenho mais que dar satisfações da minha vida à minha mãe. Percebi que você ainda precisa dessa segurança, da casa da mãe e não te julgo por isso, talvez um dia nos reencontremos ou não. Agora, novamente vou embora sem me despedir, estou sendo egoísta, mas certo dos meus desejos, parto em busca do meu caminho. Espero que entenda e siga o seu, já não temos mais segredos com as nossas mães, nem entre nós, espero também que dessa vez, tudo seja mais fácil para você, tente ser feliz aqui, não te peço que me siga. Percebi que não te faria tão feliz. Mudo sempre de rumo, ainda quero conhecer muitas coisas, pessoas, lugares, ter experiências e não sei se você entederia, meu novo estilo de vida". Adeus.

Uma certeza, com certa crueza, tomou conta de mim.Não olhei para D. Inês. Larguei o bilhete. Sem lágrimas, segui calado de volta para casa e assim, permaneci. No dia seguinte, silêncio, internação, esquecimento, solidão, clínica, remédio, injeção. Como bola de meia velha, largada no canto. Nunca mais liberdade, lucidez, nem Duzão!

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